Granito Boneli

#Folha de São Paulo – STF abre caminho, e empresas pulam tribunais e vão direto à corte contra decisões trabalhistas

Supremo julga como procedentes 38% das reclamações na área, ante 28% nas ações em geral; decisões de ministros têm reduzido atuação de tribunais especializados e afrouxado legislação da Justiça do Trabalho
Ana Pompeu

BRASÍLIA – O STF (Supremo Tribunal Federal) tem ampliado o espaço para empresas pularem a itinerário tradicional de uma ação e irem direto à corte derrubar decisões da Justiça do Trabalho.
Por meio de casos pontuais, a corte tem reduzido a atuação dos tribunais especializados ao mesmo tempo que afrouxa a legislação trabalhista.

Um dos pontos-chave para isso foi a liberação da terceirização da atividade-fim, em 2018.
Mas o fenômeno tem se intensificado com outros temas, como o da pejotização — quando empresas contratam funcionários como pessoa jurídica para não arcar com encargos trabalhistas — e o da relação com plataformas digitais de transporte e de entregas.

A flexibilização no STF tem ocorrido por meio das reclamações, um tipo de ação criada para preservar os precedentes da corte quando um ministro entende que eles foram violados por uma instância inferior. Por essa via, é possível anular decisões da Justiça do Trabalho.

Parte da nova disputa jurídica se refere ao uso indevido das reclamações, na avaliação de ministros do próprio STF e também de associações de juízes e procuradores.
Dados da corte mostram que, enquanto apenas 28% das reclamações gerais foram consideradas procedentes, 38% das trabalhistas tiveram essa resposta, considerando as ações julgadas pelo STF desde 2000.

Muitas decisões autorizaram o modelo da pejotização com base no entendimento de 2018 que liberou a terceirização, ainda que sejam distintos.

Agora, o tema da pejotização segue sob suspense no STF, que ainda decidirá se a chamada “uberização” dos vínculos de trabalho de motoristas e entregadores — alvo de críticas à Justiça do Trabalho e de mudanças legislativas — é regular.

Mesmo com suspensão, algumas decisões seguem sendo tomadas. Em 29 de abril, por exemplo, Cristiano Zanin derrubou uma decisão judicial que reconhecia vínculo de emprego entre uma motorista e uma empresa de transporte.
A mulher prestava serviço intermediada por um aplicativo e nunca foi efetivamente contratada.

Esse processo se deu após o TJ do Paraná (Tribunal de Justiça) mandar o caso à Justiça do Trabalho. A defesa acionou o STF quanto à validade do modelo de PJ na alternativa para relações de trabalho.
Para a empresa, como PJ, ela teria autonomia, flexibilidade e liberdade.

Como a Folha mostrou, Gilmar tem atuado para a ordenação do tema com parlamentares e o setor financeiro em um projeto de lei para a volta da homologação das rescisões de contratos de trabalho nos sindicatos.
O objetivo é estimular a tentativa de conciliação prévia e diminuir o volume de litígios que chegam ao Judiciário.

A movimentação no STF é observada enquanto as ações trabalhistas batem recordes em anos recentes. Em 2023, foram 4,19 milhões de novos processos na Justiça do Trabalho, alta de 28,4% em relação ao ano anterior, segundo o CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

Em 2024, o STF recebeu o maior número de reclamações já registrado pela corte, ultrapassando o da última primeira vez. Dessas, 14% eram trabalhistas representando 695 casos.

O STF tem três requisitos para aceitar a reclamação. O primeiro é o da aderência entre a decisão contestada e o precedente que teria sido violado. Ela não pode, por exemplo, tratar de uma matéria diferente.
O segundo é o de que se trata de um caso novo que não foi analisado previamente pelo STF. O terceiro, que a decisão contestada seja de última instância — ou seja, que tenha esgotado as possibilidades de recurso.
Empresas têm apostado em ações com decisões apenas de primeiro grau, que ainda poderiam ser revertidas. Uma das reclamações foi apresentada pela empresa Cabify, que administra um aplicativo de transporte semelhante ao Uber, contra decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, em Minas (semelhante à decisão do segundo grau, acatando a configuração do vínculo empregatício).

Mas diferentes tipos de recursos têm sido usados, com o objetivo de pular etapas ou não enfrentar jurisprudência trabalhista consolidada em instâncias anteriores, de primeira ou segunda instância.
Há garis, entregadores, trabalhadores de salão de beleza, transportadoras de cargas e corretores de imóveis em situações semelhantes. Em alguns casos, os ministros reconhecem retorno de processos à origem para decisão.
Em outros, inclusive com efeitos concluídos nas mesmas instâncias, as decisões do STF têm significado apenas a substituição de uma jurisprudência trabalhista por outra, mais flexível.

Em 2023, em entrevista à Folha, Mirella Franco, do Bonelli Advocacia, creditou esse volume elevado de decisões do tipo no Supremo à proliferação de ações análogas, em que há decisões semelhantes identificando situações com o mesmo perfil. Isso pode significar apenas a estruturação do trabalho por PJ.

Mirella entende que não é possível considerar essas decisões como uma rebeldia da Justiça do Trabalho. Mas por ser flexível demais na missão dessas reclamações, o STF afasta a essência dos processos mais céleres — ou seja, a missão inicial.

Guilherme Feliciano, professor e ex-presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), vê uma mudança de interpretação e de transformação na atuação do Supremo.

Feliciano também avalia ser crescente o uso da reclamação trabalhista como forma de atacar a Justiça do Trabalho.
“O Supremo, paulatinamente, está se transformando num balcão de causas trabalhistas por ser flexível demais na missão dessas reclamações. Na prática, há um grupo de ministros que percebe o potencial de consolidar teses rápidas e balizadoras por essa via.”

Ele também trabalha com a hipótese de que a via de reclamação (e não o julgamento final no Superior do Trabalho) são usados como meio de consolidar entendimentos.

“Não há grupo de ministros que se reúna para isso, mas há um grupo de ministros que utiliza esse instrumento com frequência e percebe o efeito prático e político da reclamação trabalhista”, afirma o professor.

Esse espaço criado no Supremo coincide com a atuação de empresas que têm sistematicamente investido contra a Justiça do Trabalho, inclusive com o uso da inteligência artificial para identificar brechas nos julgados.


Fonte: Folha de São Paulo