Granito Boneli

#Artigo – Nova portaria do CNJ gera debate sobre limites do poder do Conselho

Felipe Porfírio Granito, Marco Antonio de Lima, Murilo Mendes Latorre Soares e Otavio Guimarães Leite Losada*

Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tornou público o Regulamento do Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário – Sisbajud, por meio da Portaria nº 3 de 14 de outubro de 2024. 

Essa nova regulamentação estabelece, entre outras determinações, que corretoras e distribuidoras de valores mobiliários que não cumprirem ordens judiciais de bloqueio de ativos de seus clientes poderão ser responsabilizadas pelo descumprimento da obrigação prestacional. Além disso, seu artigo 24 estabelece uma possível quebra de sigilo bancário e a divulgação de instituição inadimplentes em registros públicos. 

No geral, essa nova regulamentação, ao atribuir maior responsabilidade às corretoras, distribuidoras e aos bancos quanto ao cumprimento das ordens de bloqueio, gera impactos diretos para as instituições financeiras.

É perceptível que o objetivo do CNJ foi aumentar a transparência e a eficácia do cumprimento de decisões judiciais, movida a partir da persecução do interesse público e da confiabilidade do sistema financeiro. No entanto, a regulamentação levanta questionamentos acerca do poder regulamentar desse órgão, previsto no artigo 103-B da Constituição de 1988, em especial no seu parágrafo 4º.

Tendo isso em mente, o que se almeja neste artigo é tão somente analisar se o regulamento está ou não em conformidade com o que determina a Constituição Federal, os princípios da separação dos poderes e da reserva legal, sem o que, a iniciativa do CNJ, por mais bem intencionada que seja, estaria a margem do ordenamento jurídico.

Enquanto órgão do poder judiciário, o Conselho Nacional de Justiça tem competência para a edição de regulamentos autônomos e executivos. Os primeiros são equiparados a lei em sentido estrito, isto é, emanada da função precípua do poder legislativo; os segundos, por sua vez, apenas complementam a lei, ou seja, possuem efeito integrativo.

O regulamento autônomo, portanto, é exceção no ordenamento jurídico brasileiro e, no caso do CNJ, só pode ser editado se visar atender a uma das funções específicas deste órgão. Em outras palavras, o CNJ somente é habilitado a expedir um regulamento autônomo, inovando na ordem jurídica, se a matéria regulamentada versar sobre o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário ou sobre o cumprimento de deveres funcionais dos juízes.

Tendo isso em vista, a atribuição de responsabilidade solidária, especialmente no que concerne a corretoras e distribuidoras, pode ser vista como uma ampliação indevida das obrigações legais dessas instituições, pois a responsabilização pelo descumprimento de ordens de bloqueio deveria ser exigida mediante lei em sentido estrito, tendo em vista que foge das matérias a respeito das quais o CNJ poderia editar um regulamento autônomo.

Inclusive, é importante ressaltar que a responsabilidade solidária não se presume, mas resulta da lei (em sentido estrito) e da vontade das partes, nos termos do artigo 265 do Código Civil. De tal modo, o próprio ordenamento atual já deixou claro que a solidariedade deve ser prevista em lei emanada do poder legislativo, o que faz com que a nova regulamentação exceda a competência regulamentar do CNJ, transformando um ato administrativo em um mecanismo de imposição de obrigações fora dos requisitos constitucionais.

A problemática que engloba a constitucionalidade da medida remete diretamente ao princípio da legalidade, núcleo estruturante do Estado Democrático de Direito, consagrado no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal. Sobre ele, assinala Celso Bandeira de Mello que “os dispositivos constitucionais caracterizadores do princípio da legalidade no Brasil impõem ao regulamento o caráter que se lhe assinalou, qual seja, o de ato estritamente subordinado, isto é, meramente subalterno e, ademais, dependente da lei”. 

Desse modo, a imposição de responsabilidade solidária, sem a observância de um processo judicial formal no qual se garanta o direito ao contraditório e à ampla defesa, antes do devido processo legal, viola diretamente o referido princípio.

Não obstante, o novo regulamento tem o condão de ferir o princípio da separação de poderes (art. 2º da Constituição Federal), o qual estabelece a independência e harmonia entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A edição de uma norma fora das competências constitucionais, como a no caso vertente, potencialmente invade a esfera de competência do poder legislativo, a quem realmente compete inovar no ordenamento jurídico.

Além disso, também foi prevista a criação de um ranking público de instituições inadimplentes no cumprimento de ordens judiciais, o que pode intensificar esse cenário de insegurança, ao expor corretoras e bancos a consequências graves antes mesmo da conclusão de processos judiciais ou administrativos. No mesmo sentido, o artigo 24 dessa mesma regulamentação aparenta estar em desconformidade com a Lei Complementar nº 105/2001, a qual dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras, já que demonstra outras formas de quebra de sigilo bancário não previstas legalmente.

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Por todo o exposto, a sobreposição entre a falta de segurança jurídica, o desrespeito ao devido processo legal e a possível violação à separação de poderes constitui um conjunto de fragilidades que precisa ser aplicado sob a ótica de compatibilidade constitucional. Nesse cenário, as instituições financeiras e corretoras impactadas possuem fundamentos sólidos para questionar a constitucionalidade das disposições regulamentares perante o Poder Judiciário.

Conclui-se, portanto, que ao estabelecer a responsabilidade solidária para as referidas instituições, a regulamentação do CNJ pode violar diversos princípios constitucionais, uma vez que a imposição de novas obrigações e avaliações não foram respaldadas na forma de lei, mas sim por ato normativo infralegal fora das competências constitucionais do órgão.


Fonte: Conjur.